domingo, 26 de março de 2023

Telescópios – Perguntas e Respostas (Q1)

Poder de resolução e grandes aumentos: É verdade que uma luneta de 60mm e um telescópio convencional (sem óptica adaptativa/ativa) de grande porte poderiam ter capacidades equivalentes de separação em certas condições ambientais? O fabricante de meu telescópio diz que ele aumenta mais de 500 vezes. Isto é bom ou ruim?

Quando a luz de uma fonte luminosa atravessa uma abertura circular, como a objetiva de um telescópio, temos a formação de um padrão circular com zonas claras e escuras. No centro deste padrão, gerado pela difração, temos um círculo brilhante. Este círculo é denominado máximo central e é, em uma primeira aproximação, a representação das estrelas vistas em um telescópio. A separação entre duas fontes luminosas, ligada ao máximo central, pode ser descrita pelas equações (1) ou (2):

(1) a c = 1,22l /D, (2) r = 120"/d


Onde, l = comprimento de onda da observação (metros)

a c = separação angular (radianos)

r = separação angular (segundos de arco)

D = Diâmetro da objetiva do instrumento óptico (metros)

d = Diâmetro da objetiva do instrumento óptico (milímetros)

obs.: A equação (2), obtida da equação (1), é calculada para l @ 5500Å, que corresponde ao pico de sensibilidade o olho humano




Formação do padrão de difração pela passagem da luz por uma abertura circular. Na imagem da esquerda, temos o esquema que poderia possibilitar a obtenção das imagens da direita: duas fontes pontuais (S1 e S2, estrelas, lâmpadas distantes, etc.) emitem radiação isotropicamente. Feixes encontram os anteparos, que possuem pequenos orifícios ( (a) > (b). Na imagem da direita, de cima para baixo, vemos o máximo central, o primeiro mínimo de difração e o primeiro máximo (anel brilhante). Os anéis brilhantes são chamados de anéis de Airy, em homenagem ao astrônomo Sir George Airy. Quanto maior a abertura, melhor é a resolução ou separação. A abertura aumenta de cima para baixo na imagem da direita.

As equações (1; Critério de Rayleigh) e (2) fornecem a separação angular mínima entre duas fontes que um telescópio astronômico pode proporcionar. Considerando que efetuamos nossas observações dentro da atmosfera terrestre, não conseguimos efetivamente atingir este limite.Flutuações turbulentas na atmosfera superior misturam camadas de diferentes temperaturas, densidades e conteúdo de vapor de água. Com isto, o índice de refração de cada camada flutua. A frente de onda incidente no telescópio tem variações espaciais e temporais em fase e amplitude devido às mudanças no índice de refração ao longo do caminho óptico. A imagem deste objeto parece então estar espalhada por um diâmetro (seeing) muito superior à largura do máximo central de difração.

Em sítios de observação como Mauna Kea (Hawai, EUA) ou European Southern Observatory (La Silla, próximo de La Serena, Chile), o seeing e, em muitas ocasiões, inferior a um segundo de arco. No Observatório do Pico-dos-Dias (Brasópolis, Minas Gerais), esta grandeza é aproximadamente de três segundo de arco. Um valor próximo a este foi estimado por A. S. Betzler, na cidade do Rio de Janeiro (zona sul), em observações visuais do sistema epsilon Lyrae, em setembro de 1999. Baseado nesta informação, se desejamos efetuar observações de epsilon Lyrae que é constituído por dois pares de duplas, separadas por 208"(epsilon Lyrae1 : magnitudes 5,1 e 6,0, separação de 2,8" e e Lyrae2: magnitudes 5,1 e 5,4, separação de 2,3"), podemos concluir que separaríamos facilmente os dois pares de duplas mas, epsilon Lyrae1 e epsilon Lyrae2 somente se o seeing da ocasião for inferior a separação angular das mesmas.

Na Tabela-I, temos a separação angular mínima para telescópios de diferentes aberturas, usando a equação (2). Separações da ordem de centésimos de segundo de arco ou pouco menores são somente atingíveis em sítios de observação excepcionais e/ou com telescópios dotados óptica adaptativa ou no espaço.

Telescópio

Separação Angular Mínima

Observatório do Pico-dos-Dias, Perkin-Elmer 1600mm

0,08"

Refrator Tasco 60mm

2,0"

Tabela-I

Telescópios refratores e refletores newtonianos com aberturas da ordem de 100mm, são facilmente encontrados no mercado brasileiro. Normalmente, os fabricantes de alguns destes instrumentos costumam mencionar nos manuais de instruções ou mesmo no próprio nome do telescópio, que estes fornecem aumentos máximos superiores a 500 vezes. Seria isso bom ou ruim?

O aumento máximo possível a um telescópio ou microscópio é aquele que proporciona um campo de visão (CV) igual a largura do máximo central de difração (Physical Science Study Committee, 1966).

Valores de aumento que dêem origem a CV menores que o máximo central ou, muito possivelmente, o seeing proporcionarão imagens sem maiores detalhes. Segundo Rükl (1985), o aumento máximo útil é igual ao diâmetro da objetiva em milímetros. Aplicando este conceito em um telescópio de 60mm de abertura, concluímos que este poderá fornecer um aumento máximo útil de 60 vezes. O aumento, propriamente dito, é dado pela seguinte equação:

(3) A = f/f``

A = aumento

f = distância focal da objetiva

f``= distância focal da ocular

Normalmente, a distância focal da ocular é fornecida no corpo desta e da objetiva pode ser obtida da relação entre a razão focal e o diâmetro da mesma. f e f`` da equação ( 3 ) devem ser expressos, evidentemente, na mesma unidade (cm, mm, m, etc.).



Referências

Physical Science Study Committee.: 1966 In Física Parte II, 2o edição, Edart Livraria Editora LTDA, São Paulo, p.135

Rükl, A.: 1985 In Amateur Astronomer, Galery Books, W.H Smith Publishers Inc, New York, p. 185



sábado, 25 de março de 2023

Hercóbulus

Ciência e Misticismo

A crença na existência do objeto denominado Hercóbulus ou Hercólubus é atribuída a certos esotéricos.

Em 1984, astrônomos estadunidenses formularam uma hipótese para explicar por que registros fósseis indicam que, aproximadamente a cada trinta milhões de anos, ocorre a extinção de uma grande parte dos seres vivos terrestres. Esses pesquisadores propuseram a existência de uma pequena estrela anã vermelha, chamada Nêmesis, que orbitaria o Sol em uma elipse com um semi-eixo maior de 90.000 U.A., ou 1,4 anos-luz. Quando esta estrela se aproximasse do periélio (a parte da órbita mais próxima do Sol), ela passaria por uma região distante cerca de 10.000 U.A. do Sol, conhecida como Nuvem de Oort-Öpik, onde bilhões de núcleos de cometas estão em órbitas quase circulares. Durante a passagem de Nêmesis, esses cometas seriam perturbados gravitacionalmente, sendo arremessados em direção às partes mais internas do Sistema Solar. Devido ao grande número de cometas, a probabilidade de colisão com a Terra seria consideravelmente maior do que a atualmente existente.

Alguns esotéricos, ao tomarem conhecimento desta hipótese por meio dos jornais da época, modificaram-na sem justificativas plausíveis, alterando o tipo de objeto de estrela para planeta ou cometa, modificando sua órbita para uma trajetória que passa pela região planetária do Sistema Solar, atribuindo cores ou insinuando que os astrônomos conhecem sua existência, mas preferem não revelá-la para não alarmar a população (semelhante ao enredo do filme Deep Impact ou de um episódio de X-Files). O tema "Hercóbulus" ganhou notoriedade em programas sensacionalistas de TV em alguns países da América Latina, resultando na produção de vários livros, artigos, palestras e cursos sobre o assunto.

Descobrir Nêmesis é uma tarefa complexa, pois o objeto emite radiação predominantemente na faixa do infravermelho (devido à baixa temperatura superficial), uma faixa para a qual os detectores da época não eram muito sensíveis. Além disso, seria necessário fazer uma varredura em todo o céu, o que requer um telescópio de uso quase exclusivo. A busca por Nêmesis foi realizada pelo IRAS, que usou modelos estelares para prever o brilho esperado, mas nada foi descoberto nos dados disponíveis.

Uma varredura do céu em três bandas do infravermelho, realizada no Chile (DENIS), descobriu a anã vermelha DENIS-P J104814.7-395606.1, com mais de 60 massas de Júpiter, a aproximadamente 13 anos-luz do Sol. Como o brilho dos objetos astronômicos diminui com o inverso do quadrado da distância, seria mais fácil descobrir Nêmesis a 1,4 anos-luz do que a anã vermelha encontrada. A provável órbita de DENIS-P indica que ela gira ao redor do núcleo da Via Láctea, assim como o Sol. A trajetória calculada de DENIS-P no espaço não sugere uma possibilidade de colisão com a Terra ou que ela arremesse cometas para o Sistema Solar interior. A varredura realizada no Chile, com detectores modernos e sensíveis, não encontrou Nêmesis ou o imaginário Hercólubus, apesar das alegações persistentes de que este último se aproxima da Terra.


Nuvem de Oort e o Cinturão de Kuiper

Nuvem de Oort-Öpik e órbitas elípticas, parabólicas e hiperbólicas de alguns hipotéticos cometas. Fonte: Bergamini, D.:1970 In, O Universo, Biblioteca da Natureza Life, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, P.69

Durante as primeiras décadas do século XX, diversos pesquisadores investigaram as perturbações gravitacionais planetárias sobre as órbitas de corpos do Sistema Solar, como asteroides e cometas. Esses estudos levaram ao desenvolvimento das primeiras ideias sobre a distribuição estatística dos parâmetros orbitais desses corpos.

Strömgrem (1914, 1947) demonstrou que as órbitas hiperbólicas dos cometas (1/aorig < 0, onde  aorig é o semi-eixo maior da órbita do objeto antes de entrar na região planetária do Sistema Solar) não eram as originais quando esses corpos entraram no Sistema Solar, mas o resultado da interação gravitacional com os planetas.

Sinding (1948) determinou valores de 1/aorig<01/a_{\text{orig}} < 0 para vinte e um cometas de longo período. Esses resultados, juntamente com o trabalho de Van Woerkom (1948), formaram a base para o trabalho de Oort (1950) sobre a existência de um reservatório de cometas além dos limites do Sistema Solar. A teoria de uma hipotética nuvem de cometas distantes, com trajetórias estáveis frente a perturbações estelares, foi formulada por Öpik em 1932, antes de Oort.

Oort deduziu a existência desta nuvem com base no grande número de cometas de longo período com 1/aorig<104U.A.11/a_{\text{orig}} < 10^{-4} \, \text{U.A.}^{-1} dentro de uma amostra de dezenove cometas. Seus afélios estariam a pelo menos 200.000 U.A. do Sol. Oort concluiu que haveriam órbitas estáveis a aproximadamente 200.000 U.A., as quais poderiam ser perturbadas por passagens estelares próximas. Admitindo que as passagens estelares poderiam tornar randômica a distribuição orbital da nuvem e considerando a idade do sistema solar, a nuvem poderia conter cerca de 2×10112 \times 10^{11} cometas. Com uma massa cometária média da ordem de 1013kg10^{13} \, \text{kg}, a massa total da nuvem seria de aproximadamente 0,3 massas terrestres ou 2×1024kg2 \times 10^{24} \, \text{kg}.

De acordo com a teoria da difusão orbital de Van Woerkom (1948) para as perturbações planetárias, o número de cometas com 1/aorig<104U.A.11/a_{\text{orig}} < 10^{-4} \, \text{U.A.}^{-1} deveria ser maior do que o observado. Em resposta, Oort e Schmidt (1951) sugeriram que muitos cometas poderiam não ser facilmente descobertos em suas primeiras passagens pelo Sistema Solar interior devido às suas grandes distâncias de periélio e consequentemente baixo brilho. Esse trabalho originou o conceito de cometas novos (brilhantes devido à grande produção de poeira e gás e originários da Nuvem de Oort) e cometas velhos (pouco brilhantes devido à baixa produção de poeira e gás e com órbitas elípticas com períodos orbitais curtos).

Imagem CCD do centauro (2060) Chiron (círculo verde) obtida em 05/05/1999 no Observatório do Pico-dos-Dias (Brasópolis, Minas Gerais). Este objeto, que orbita entre Saturno e Urano, foi provavelmente um membro do cinturão de Edgeworth-Kuiper, colocado nesta órbita mais próxima do Sol devido a perturbações gravitacionais de Netuno ou Urano.

 

Graças aos avanços tecnológicos em telescópios e detectores, além de estudos dinâmicos das trajetórias de cometas, sabemos hoje que o Sistema Solar está envolvido por um vasto disco composto por núcleos de cometas. Esse disco, conhecido como cinturão de Edgeworth-Kuiper, começa um pouco além da órbita de Netuno e se estende muito além, até a esferoidal Nuvem de Oort, da qual grande parte dos cometas hipoteticamente se origina.

A existência do cinturão de Edgeworth-Kuiper foi sugerida independentemente por K.E. Edgeworth em 1949 e por G. Kuiper em 1951. Eles propuseram que essa região, em forma de disco, se encontraria a pelo menos 36 U.A. do Sol. Em 1980, o uruguaio J. Fernandez propôs que este disco seria o reservatório de cometas que, após encontros com os planetas gigantes, são injetados em órbitas com períodos orbitais curtos.

Essas hipóteses foram mais fundamentadas com a descoberta de um corpo com magnitude 22, situado além da órbita de Netuno, o primeiro membro conhecido do Cinturão de Edgeworth-Kuiper. Este objeto, designado 1992 QB1, foi descoberto por Jewitt e Luu em 1993. Após essa descoberta, diversas outras foram realizadas, de modo que, em 1998, já se conheciam 66 desses corpos. Como essas descobertas foram feitas em uma pequena área do céu, acredita-se que possam existir até 160.000 objetos similares ao 1992 QB1, com diâmetros maiores que 100 km, e alguns tão grandes quanto Plutão (2.360 km) e o seu satélite Caronte (1.200 km).


Referências

Betzler, A. S.: 1998, in Um estudo dos cometas Hale-Bopp e Chiron, Projeto de Final de Curso para a Obtenção do Título de Astrônomo, UFRJ-CCMN/Departamento de Astronomia, Rio de Janeiro, p. 18, 30

Edgeworth, K.E.: 1949, MNRAS 109, 600.

Fenandez, J.: 1980, MNRAS 192, 481

Jewitt, D. & Luu, J.: 1993, Nature 362, 730

Kuiper, G.P.: 1951, in Astrophisics: A Topical Symposium, J.A . Hynek ed. McGraw Hill, N.Y., 357

Oort, J.H.: 1950, Bull. Astron. Inst. Netherl. 11, 91

Oort, J.H. & Schmidt, M.: 1951, Bull. Astron. Inst. Netherl. 11, 259

Öpik, E.J.: 1932, Proc. Amer. Acad. Astr. Sci. 67, 199
Sagan, C & Druyan, A. : 1985, in Cometa, Livraria Francisco Alves Editora S.A.,p.300-301

Strömgrem, E.: 1914, Publ. Obs. Compenhagen 19,

Strömgrem, E.: 1947, Publ. Obs. Compenhagen 144,

Van Woerkom, A . J. J.: 1948, Bull. Astron. Inst. Netherl. 10, 445

O colonialismo cultural na ciência

  Esta postagem é uma forma de catarse e também um registro para futuras gerações de cientistas brasileiros. Em 15 de dezembro de 2022, envi...